No centro do setenário, a eucaristia
Faculdade João Paulo II
Teologia dos sacramentos II
Prof. Dr. Manoel Pacheco
No centro do Setenário, a Eucaristia
A história dogmática da eucaristia revela a continuidade da fé desde o Novo Testamento até o Vaticano II: a eucaristia é o sacramento central. Ela tem um valor particular entre os outros sacramentos, de um lado por causa de sua instituição imediata por Jesus, de outro tendo em vista o que ela comunica aos batizados. Sua instituição é expressamente reportada a uma decisão de Cristo antes de sua morte, o que não é o caso dos outros sacramentos. A eucaristia comunica a presença pessoal de Jesus, seu próprio ser, coisa que os outros sacramentos não realizam da mesma maneira nem no mesmo grau. A tradição exprimiu esse lugar privilegiado da eucaristia em diversas maneiras. A linguagem da piedade e da liturgia multiplica as fórmulas que tentam expressar essa originalidade única. Por exemplo, o cristianismo latino se compraz em falar do Santíssimo Sacramento. Por outro lado, a eucaristia tem suscitado, no Ocidente, práticas paralitúrgicas, de modo especial o culto e a adoração fora da missa. Enfim, o Vaticano II apresentou esse sacramento como “fonte e ápice” da evangelização (PO 5.2), da vida cristã (LG 11.1), “raiz e centro” da comunidade dos fiéis (PO 6.5). O sacramento eucarístico tem uma realidade toda particular, exprimindo o dom objetivo de Deus em seu filho, não deixa de ser sacramento da fé (GS 38.2): é preciso, portanto, ao falar dele, evitar tudo o que tenderia a reduzi-lo a um gesto mágico ou algo em si sem relação real com a fé evangélica.
O sacramento da presença de Cristo
O sacramento da eucaristia manifesta a presença misteriosa e real de Cristo em sua Igreja e no mundo. Esse tema da presença de Jesus na eucaristia é expresso com firmeza desde os primeiros textos cristãos (Justino, Irineu), assim como no Novo Testamento. A história da fé eucarística exprime esse realismo de múltiplas maneiras: Cristo é “verdadeiramente” presente, o que significa que ele não está presente na eucaristia somente de “modo figurado” ou por sua “virtude”.
A afirmação da presença real, que suscitou, no ocidente, muitas polêmicas, tentou vários caminhos para chegar a uma formulação teológica adequada. A Idade Média latina se comprazia em dizer que Cristo estava “contido” no pão e no vinho: essa expressão limitou-se a seu tempo. Os medievais falavam, também, da “transubstanciação”, quer dizer, pensavam que a substância do pão e o do vinho era “transformada” na do corpo e do sangue de Cristo. A presença real eucarística era, então, uma presença “substancial”. O termo “substancia” é aqui tomado em sentido metafísico e não em sentido empírico. A “transubstanciação” pretendia excluir uma “transmutação” de tipo alquimista. O Vaticano II propôs duas outras perspectivas teológicas. Uma é bíblica, a do “memorial” (SC 47 e UR 22.3): é Deus que atualiza em nossa história temporal o mistério permanente de seu filho. A outra procura integrar a presença sacramental de Jesus num conjunto litúrgico, o dos diversos modos pelos quais Cristo está presente nas celebrações eclesiais (SC 7.1).
A história dogmática da eucaristia revela, então, que a fé eclesial acolhe o realismo da Quinta-feira Santa de maneira radical e global: o Cristo que verdadeiramente ressuscitou está também verdadeiramente presente no sacramento da eucaristia. Mas as divergências surgem logo, desde a Antiguidade (corrente gnóstica), depois na Idade Média (sécs. IX-XI), em seguida com a Reforma (séc. XVI) e depois na época moderna. Daí a necessidade muito clara, por soluções aceitáveis. A teologia da transubstanciação teve, no cristianismo latino, um peso considerável. Ela deve se abrir, hoje em dia, para o mistério da ressurreição. É possível que a linguagem do memorial ou a mais existencial da presença de Cristo em suas múltiplas formas venha ocupar uma posição mais importante. Nesse caso, é preciso que a última perspectiva (SC 7) seja estendida às modalidades da presença de Cristo no mundo da criação e da história. A eucaristia poderá ser, então, compreendida como “ápice” dessa presença misteriosa do Verbo no universo.
Presença de Cristo em seu mistério pascal
A reflexão sobre a presença eucarística de Cristo apresenta uma dificuldade advinda do fato de que essa presença pessoal se acha inscrita na dinâmica de seu mistério pascal, isto é, do dom total de si mesmo que o faz passar para seu Pai. Esse aspecto é, às vezes, muito pouco sublinhado. Fala-se de Cristo “verdadeiramente aí” sem explicitar que ele se comunica na atualidade de sua páscoa. O Concílio de Trento percebera esse risco e, como vimos, providenciou para que o decreto sobre o sacramento eucarístico fosse acompanhado por outro sobre a missa como sacrifício. Passando de um ponto de vista a outro, então ainda bem separados, o concílio já pressentia que o conceito de memorial poderia fazer a unidade.
Quem é de fato, esse Cristo que é “re-presentado” sob os sinais eucarísticos? A tradição responde de duas maneiras: é Jesus em estado de oferenda de si mesmo e de sacrifício, e é também Jesus ressuscitado em quem permanece o dom sacrifical de si mesmo realizado de maneira definitiva na cruz. O Concílio de Trento insistiu firmemente na relação entre a missa e a cruz, portanto, entre o Cristo eucarístico e o Cristo do Gólgota. A segunda resposta, que se refere à globalidade do mistério pascal e não só à cruz, foi assim mais freqüente no Oriente e assumida pelo Vaticano II. Por exemplo: os bispos, “portanto, continuamente se esforcem por que os fiéis cristãos adquiram conhecimentos mais profundos do mistério pascal e o vivam pela Eucaristia (CD 15) “a eucaristia”, na qual se torna novamente presente a vitória e o triunfo de sua morte” (SC 6); “o memorial de sua morte e ressurreição” (SC 47).
Não se trata, evidentemente, de opor, uma à outra, essas duas maneiras de dizer a identidade do Cristo eucarístico. Elas não se chocam, de forma alguma. Mas a segunda é mais adaptada a tudo o que implica o mistério eucarístico: é o Ressuscitado que permanece em estado de oferenda e que nos concede participar de sua atitude espiritual. Falar apenas de sacrifício eucarístico e compreendê-lo apenas como sacrifício da cruz é correr o risco de ser unilateral. Além disso, a referência ao mistério pascal leva a trazer à luz o papel do Espírito no sacramento eucarístico e a orientação escatológica daí decorrente. Ela permite igualmente contemplar no Cristo presente o mistério da criação do qual ele mesmo é testemunha: pelo “sacramento de fé, no qual os elementos da natureza, cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue gloriosos” (G.S. 38.2). É só na Páscoa eucarística que se compreende bem o sacrifício eucarístico. É no Espírito de sua ressurreição, e por esse Espírito, que Cristo se oferece.
A eucaristia, sacrifício espiritual
Resta explicar o que é esse sacrifício espiritual do qual Cristo é portador e que relação tem com o sacrifício histórico de Jesus em sua morte. Não convém, com efeito, que a ampliação pascal do sacrifício venha ocultar sua importância e sua força misteriosa.
Antes de tudo, o sacrifício presente na eucaristia não é um objeto entregue à nossa posse. É alguém, Jesus, que se oferece. Em um ato pessoal que é uma oferenda por amor. Jesus quis arriscar e, finalmente, sua vida. Não é a paixão e a morte que, por si mesmas, têm um sentido espiritual; é o dom de si que elas traduzem que lhes dá um sentido.
Em seguida, o sacrifício presente na eucaristia não é um outro sacrifício além daquele do qual Jesus é o autor nos dias de sua páscoa. Não atenta contra a oferenda histórica que Jesus fez de si mesmo de uma vez por todas (hephapax), nem à sua única ressurreição. Nem é um suplemento daquela oferenda, pois não há nada a lhe ser acrescentado. A missa não repete nem renova o dom que Jesus fez em sua vida, ela o “torna presente” e o atualiza, quer dizer, o faz intervir em nossa própria história, conforme o sentido forte do termo “memorial”. Ela permite que o sacrifício de Cristo intervenha em nosso tempo de maneira eficaz, “propiciatória”, diz o Concílio de Trento. Nesse sentido, a eucaristia tem uma eficácia real, não apenas uma significação importante. Ela é, por conseguinte, um verdadeiro sacramento: efeito e significação vão a par.
Portanto, o que a Igreja faz ao celebrar a eucaristia é participar da única oferenda que seu Senhor fez de si mesmo. Ela comunga no sacrifício de Cristo e em sua páscoa. Ela aprende e recebe de Cristo a possibilidade de se oferece, por sua vez, segundo a perspectiva agostiniana, pelo sacrifício existencial de cada um dos seus. Ela tende a se tornar “uma oferenda viva” para a glória de Deus (SC 12). Mas o Vaticano II vai mais longe: a Igreja oferece Cristo: “os fiéis oferecem a Deus a vítima divina e com ela a si mesmos” (LG 11.1); os ministros ordenados “tornam presente” o sacrifício crístico (LG 28.1), “realizam o sacrifício eucarístico” (LG 10.2), têm “o poder de oferecer” esse sacrifício (PO 2.2). A Igreja ao celebrar a eucaristia comunga no Ressuscitado, de uma comunhão sacrifical, pois Jesus quis “confiar a Igreja o memorial de sua morte e ressurreição (SC 47). O que pode autorizar uma fórmula audaciosa: a eucaristia é “ato de Cristo e da Igreja” (PO 13.2). “A Igreja faz a eucaristia”, mas primeiro, “a eucaristia faz a Igreja”. (H. DE LUBAC, Méditation sur l’Église, Paris, Aubier, 1953, PP. 123-137).
Não convém, portanto, insistir unilateralmente no sacrifício para a remissão dos pecados. Na Bíblia, esse sacrifício tem evidentemente o seu lugar, mas se faz igualmente menção de sacrifícios de louvor,de ação de graças ou ainda de comunhão, e o próprio termo “eucaristia” orienta nesse sentido. Se o sacrifício da missa não é “somente” louvor e ação de graças, é também isso e não se reduz ao sacrifício pelo pecado. Ao mesmo tempo, percebe-se, por causa dos sacrifícios de comunhão da Antiga Aliança, que não se deve separar, na eucaristia, o sacrifício da comunhão: é a oferenda que se partilha e que une. Assim como o sacrifício e a presença real, também o sacrifício e a comunhão são indissociáveis.
Resta tirar uma última indicação do esquema do Vaticano II sobre os três ofícios de Cristo. Segundo essa analise já conhecida, Cristo é ao mesmo tempo profeta, sacerdote e rei: ela fala e anuncia, oferece sua vida pela salvação do mundo, manifesta como viver na solidariedade da fé e da esperança. O Senhor que se comunica na eucaristia não é, portanto, somente aquele que se dá em sacrifício. É também, e no mesmo movimento espiritual, o que traz a Palavra divina e instaura na humanidade novas formas de vida comum. Há aí uma ampliação importante do tema puramente sacrifical.
A eucaristia tem significações e efeitos que podem ser organizados em dois conjuntos: ela une a Cristo e une os cristãos entre si. O Vaticano II retomou com força esse tema tradicional: que os fiéis “dia a dia aperfeiçoem na união com Deus e entre si, para que, finalmente, Deus seja tudo em todos” (SC 48).
Pelo sacramento eucarístico, Cristo une a si os homens que nele crêem e são batizados. “O efeito desse sacramento, produzido na alma de quem o recebe dignamente, é a união do homem com Cristo”. União santificadora (SC 10), fonte de renovação (LG 11.1), glorificação de Deus (SC 10), perdão dos pecados, o mistério eucarístico faz discípulos de Cristo seres que o Espírito associa a sua Páscoa e qualifica para a ação de graças, para a coragem do dom de si e para a espera escatológica da última vinda do Senhor.
A eucaristia, por outro lado, une os batizados entre si. Ela é “sacramento do amor” (SC 47). Cristo, que se comunica por ela, dá aos cristãos uma “inserção plena” em seu corpo (PO 5.2) e a “unidade do Povo de Deus, apropriadamente significada e maravilhosamente realizada por este augustíssimo sacramento” (LG 11.1). Os fiéis são assim chamados a “formar um só corpo estreitamente unido na caridade de Cristo” (CD 15). O Vaticano II insistiu no caráter extensivo da reunião eucarística e, portanto, em sua relação com a evangelização (PO 5.2, 6.5), sem deixar de lembrar que essa liturgia é “fonte e ápice” da comunidade local (CD 30.6) e de toda vida cristã (LG 11.1). Desse ponto de vista, o pecado, cujo perdão é significado e realizado pela eucaristia, pode ser analisado em termos de egoísmo e fechamento do grupo reunido.