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Notícia

17 , 2015

A dimensão contemplativa da liturgia cristã symbolum e mysterium - prof. dr. pe. manoel pacheco.

A DIMENSÃO CONTEMPLATIVA DA LITURGIA CRISTÃ

SYMBOLUM E MYSTERIUM

Prof. Dr. Pe. Manoel Pacheco.

 

         A experiência humana traduzida pela cultura contemporânea vem demostrando um preferencial índice de direcionamento à procura e a estabilidade do bem estar, o denominado culto ao corpo e o desejo de uma constante harmonização global da pessoa.

         As ciências sociais, sobretudo as escolas mais avançadas de estudos nesta área e de origem anglo-francesa, definem este comportamento recuperando determinados mosaicos de hermenêutica humana que vem sendo definidos pela história do pensamento filosófico, aqui, segundo nossos autores, indicaremos as últimas definições, uma clássica o “homo sapiens” e outra contemporânea, o “homo estheticus” (estética).

         A passagem de uma tradução sobre o homem que atravessou do racionalismo (Hegel), emancipatório (Marx), ao estético (Mafesoli). Esta conclusão é definida pela autonomia da experiência humana, cujos autores, simplesmente constatam e apreendem o fenômeno.  

         É a redescoberta do homem universal, holístico e monóstico, o reflorescimento de um neo-romanticismo e uma original busca terapêutica de transcendência, com mediações unificantes e pluralistas: o aroma terapia, musico terapia, cuidados sofisticados com a forma do corpo e a sutileza dos investimentos de beleza para tratamentos especiais de rejuvenescimento da pele, a busca dos clássicos recursos de equilíbrio pessoal como o yoga, meditação oriental, o vegetarianismo, a cultura das ervas, a orientação voltada para a energia primordial, a re-acentuação da física quântica, o avanço das propostas de espiritualizações orientais em todo o mundo, a libertação do sagrado e o retorno do sagrado às esferas públicas, a desprivatização do sistema clássico religioso e o retorno do símbolo.

         Este temperamento do homem contemporâneo elimina o sufocamento causado pelo racionalismo e pela era industrial, passamos do teocentrismo clássico, para o antropocentrismo moderno e nos encontramos agora no eco-centrismo, o pós-moderno.  

         Um novo paradigma do modo de ser e estar no mundo do homem. O mundo religioso influenciado por essa exigência é conduzido a reabrir e a explorar sua dimensão simbólica, seus acervos artísticos e se lançar em prospectiva lúdica do maravilhoso que se expressa no rito e do fascinante que seduz. O homem religioso contemporâneo superou a experiência de um deus politico e libertador, de um deus ortodoxo e dogmático, para um deus sedutor e atraente em beleza, docilidade e ternura, terapeuta e ágape. É o momento, segundo a antropologia sociocultural, cuja epistemologia é fundada no campo da semiótica, da democratização do sagrado. Quantas experiências religiosas e novos movimentos religiosos e “carismáticos” surgem nesse período e em constante expansão, quantos modelos pluralistas de culto dentro de uma mesma Igreja local (missa versus Deus, missa sertaneja, missa de quebra maldição, missa com a piscina de Siloé, missa de cura e libertação, missa carismática, missa e cerco de Jericó etc.). Quantos fiéis espontam com “dons” especiais: pregação leiga, oração leiga, cura, unção, “falar em línguas indecifráveis”, votos, consagrações, a volta do novenário popular e a divulgação iminente dos neo-novenarios marianos. Uma explosão de “ministerialização laical do cristianismo” em confronto aberto, muitas vezes, com a doutrina histórica e milenar da Igreja, basta aqui registrar as afirmações frequentes como “nossa” Missa e o “segundo batismo” etc., incluímos, também nesse texto, o horizonte da cristologia pré-pascal, que coerentemente sustenta que Jesus de Nazaré era um leigo, o que parece orientar este modelo de laicização “total” da Igreja, segundo os teólogos holandeses.

A nucleação desse material de pesquisa, contudo, não há limites, é encontrado no âmbito do neopentecostalísmo “cristão protestante”; gerando assim o conceito que nos leva a compreender a forma de religiosidade subjetivada: a democratização do sagrado. Não se tem visão de um princípio fundador, mas de um “big-bem”, isto é, uma explosão aleatória, um mítico mental sem os arquétipos das lendas.

         A verdade que emerge dessa experiência do homem é o que nos interessa, para tentar compreender de que modo à liturgia cristã pode aproximar-se desse homem que, hoje se exprime a nível espiritual com essas características fundadas em um personalismo religioso, seguindo a inspiração de uma hetero-soteriologia. Tudo isso, nos leva ver apresentado, que a moldura da cultura pós-moderna está presente nas grandes cristalizações ocidentais do mundo religioso clássico e ao mesmo tempo perceber que não podemos dirigir-lhes sentenças dogmáticas, a exemplo de Trento, mas nos interrogarmos o porquê do déficit real de nossa incomunicabilidade com as moções do homem religioso contemporâneo e suas exigências espirituais?

         Os teólogos do culto cristão, sentindo-se eles, responsáveis por uma resposta diante desse fenômeno, indicam a importância de recuperar para além do convencionalismo celebrativo, a dimensão estética da litúrgica, não como produção alienante, mas para suscitar à experiência de uma condição humana original criatural, global linguística e somática do mistério.

         Damos boas vindas à chegada dos desafios suscitados pelas novas afirmações dos recursos exigidos pela experiência do homem religioso contemporâneo, que para um clássico autor bastaria precisar os rótulos históricos da síntese greco-romana do cristianismo, para o autor contemporâneo, ao contrário, ele admite o apelo central de Jesus sobre a sabedoria (pesquisa-ciência), velado nos santos evangelhos, texto onde Ele ensina: “um escriba retira coisas velhas e novas de seu baú” (acervo).

Orientados por essa visão pedagógica, própria dos santos evangelhos, nos inclinamos neste itinerário à procura do preenchimento desse homem, na ótica do espiritual, e sustentamos que a dimensão contemplativa da liturgia precisa ser restaurada para propormos uma correspondência integral com os apelos da alma do homem.

         Destacando dois elementos centrais de tipo holístico e somático, a dimensão contemplativa da liturgia, sem alterar o culto, tem meios próprios e objetivos para tocar esses ambos os aspectos que parecem ser dominantes na alma do homem religioso na atualidade: a começar a exprimir no âmbito da ação celebrada que nós estamos diante de um mistério e diante de um Vivente, diante de uma pessoa espiritual e real, as formas e a materialização do culto estão em função desse encontro com as maravilhas de Deus; o Cristo, esplendor da glória divina e o seu mistério pascal; a síntese da vida do universo, toda ela desemboca em um mistério de amor universal e renovação plena do mundo criado; Ele não distingue nossa realidade infinitamente miserável de sua glória divina e eterna. Ele é presente.

         O culto precisa revelar o Cristo e permitir sua transfiguração e epifania, conduzir-nos diante de sua paixão pelo homem, que nunca se põe no horizonte como a semelhança do sol. O culto deve conduzir os fiéis a deduzir que a fé não é baseada naquilo que enxergamos.

         A esfera da contemplação desse mistério de amor nos traz a consciência desse dom maravilhoso que nos é concedido por gratuidade divina, e este dom nos leva ao ato de agradecimento por havê-lo recebido. Aqui se inicia, portanto, o louvor.

         Para o cristianismo não existe uma separação entre o interior e o exterior do homem, por mais que elaboramos simulações sociais, por este motivo, também o louvor, não poderá ser manifestado com uma atitude fechada e intrínseca, mas com a totalidade do corpo (soma), o louvor deve sair pelo corpo, pelos poros, da globalidade do homem, de sua linguagem corporal e simbólica carregada e gravida de significados transcendentes.

         O corpo, segundo a fé do novo testamento, é o templo do Espírito Santo; o corpo de Cristo crucificado é o maior e mais perfeito louvor a Deus, diante do qual não existe outra glorificação a Deus maior ou mais perfeita. Em conclusão o corpo também ora, louva, agradece, assim também na penitência se recolhe e se redime, jejua e entra pelas vias do ascetismo, do deserto, do silencio, da renuncia e do celibato, procurando sua plenitude, a configuração com Cristo.

Estes passos reflexivos pode nos introduzir a pensar o quanto o patrimônio cristão, em sua dimensão essencialmente cultual, pode aproximar-se e doar ao homem contemporâneo suas próprias fontes, que o mesmo interpela.

         Tal tarefa é condutora à um extenso exame da literatura bíblica, onde é descoberto não uma ontologia ou uma cosmogonia ou metafísica, mas uma Pessoa divina encarnada (o verbo de Deus se fez carne). Tudo sobre Deus está revelado e sendo comunicado em um corpo humano (Filho). O maior autor do Novo Testamento (Paulo), fala de uma Igreja que é Corpo. A comunhão, o encontro com Deus (Filho) e o Homem é somático, a Eucaristia.

         Decorrendo as diversas afirmações do Novo Testamento, aparecerá cada vez mais clara a centralidade do corpo e o seu valor no mistério da revelação cristã e, a liturgia cristã, precisa devolver ao homem, no interior de seu espaço cultual, a possibilidade dele suprir essa necessidade, muitas vezes única para exprimir um autêntico louvor.

        

         A experiência do mistério

Na  Liturgia  a  Igreja  celebra  o  mistério  pascal,  por  meio  do qual

Cristo realizou a salvação de todos os homens. Os fiéis devem viver o mistério pascal dentro da Liturgia e devem dar testemunho dele ao mundo. Dentro da Liturgia participa do sacerdócio (por meio do culto) profético (com o anuncio do evangelho) e real (no serviço da caridade) de Cristo.

         A liturgia torna visível à Igreja o sinal e o momento de comunhão dos homens com Deus, por meio de Cristo. Os fiéis não são simples espectadores que assistem à liturgia como se fosse um espetáculo. Todos os crentes são chamados a empenhar-se, a tomar parte ativa na vida da comunidade de modo consciente, ativo e frutuoso.

         Todavia, a liturgia não é a única ação da Igreja: ela deve ser precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão de todo crente. É a esse ponto que a liturgia pode levar os seus frutos na vida dos fiéis. Eles se manifestam na vida nova vivida segundo o Espírito, tornam-se evidentes em uma vida dedicada à missão da Igreja, os santos e os mártires e, se tornam tangíveis com o serviço ativo e generoso.

         A liturgia é o lugar principal em que é possível desenvolver a catequese do povo de Deus. Dentro da liturgia, a catequese tem o intento de introduzir os fiéis no mistério de Cristo. Na liturgia se procede, de fato, do visível ao invisível, dos sacramentos (sinais sensíveis de algo que não é visível) aos mistérios.

         Através de Pentecostes, o Espírito Santo foi infundido na Igreja e inaugura um tempo no qual Jesus Cristo se torna presente e comunica a sua salvação por meio da liturgia, “até que Ele venha” (1Cor 11,26).

         Cristo, que vive na sua Igreja, age, de fato, por meio dos sacramentos. A tradição do Oriente e do Ocidente chama a ação de Cristo nos sacramentos de “economia sacramental”. Por meio da economia sacramental, os homens podem receber os frutos do mistério pascal.

         Mistério Pascal de Cristo quer no seu fato histórico, de há dois mil anos, como na sua permanência viva no Senhor Ressuscitado e na sua comunicação à Igreja, mediante, sobretudo, a celebração sacramental, é a realidade básica de toda a liturgia e de toda a vida cristã. É uma das convicções que o Concílio Vaticano II mais claramente formulou.

 

         “Esta obra da Redenção humana e da perfeita glorificação de Deus (...) realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo Mistério Pascal” (SC 5). “Pelo Batismo os homens são introduzidos no Mistério Pascal de Cristo” (...). Desde então, nunca mais a Igreja deixou de se reunir em assembleia para celebrar o Mistério Pascal: lendo, em todas as Escrituras, tudo que lhe dizia respeito, celebrando a Eucaristia, na qual “se torna presente o triunfo e a vitória da sua morte” (SC 6).  

 

         Tudo na Liturgia e na vida cristã é iluminado e recebe pleno sentido desse Mistério Pascal, sempre presente em nós: no ano litúrgico: o Motu proprio, com que Paulo VI aprovou, em 1969, o novo calendário romano, intitulou-o expressamente Mysterii Paschalis, porque, como ele mesmo afirma, “a celebração do Mistério Pascal, como claramente ensina o Concilio Vaticano II, constitui o momento privilegiado do culto cristão, no seu desenvolvimento quotidiano, semanal e anual. Por isso, na reforma do ano litúrgico, segundo as normas dadas pelo Concílio, é necessário que se dê o maior relevo ao Mistério Pascal de Cristo”; daí que se destaque, no ano litúrgico, o Tríduo Pascal como momento culminante: “porque a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus foi realizada por Cristo especialmente no seu Mistério Pascal” (NG 18); o mesmo ponto de referência têm as festas dos Santos e da Virgem, “porque ao celebrar os dias natalícios (isto é, a morte) dos Santos, ela (a Igreja) proclama o Mistério Pascal realizado neles” (SC 104); assim como, cada semana, ao domingo: “a Igreja celebra o Mistério Pascal e de oito em oito dias, no dia que justamente se chama dia do Senhor” (SC 106); do mesmo modo fica rica de conteúdo, pelo Mistério Pascal, a celebração da Liturgia das Horas e qualquer outra experiência pessoal ou comunitária de oração ou devoção.

         Quando S. João Paulo II, em 1988, quis destacar os “princípios diretivos da Constituição”, nos 25 anos da sua aprovação, não teve dúvidas em colocar, como primeiro deles. “a atualização do Mistério Pascal de Cristo na liturgia da Igreja” (VQA 6).

          Mas, como finalidade da liturgia é a vida cristã. E esta também está impregnada da vida pascal de Cristo, já desde a primeira instrução pós-conciliar, em 1964, a Inter oecumenici (n.6): a Igreja lembra-nos de que “o esforço desta ação pastoral centrada na liturgia deve tender a fazer viver o Mistério Pascal” (ut mysterium paschale vivendo exprimatur).

         No catecismo da Igreja Católica toda a apresentação da vida litúrgica e sacramental é baseada nesta perspectiva. Na primeira secção da segunda parte, o enfoque é claro: “O mistério Pascal no tempo da Igreja” (CIC 1077ss). O que Cristo realizou há dois mil anos em Jerusalém agora permanece nele e, pelo seu Espírito, o atualiza no tempo da Igreja, sobretudo por meio dos sacramentos. À liturgia chama-lhe “celebração sacramental do Mistério Pascal” (CIC 1135ss). E afirma que “na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu Mistério Pascal” (CIC 1085).

         A descrição terminológica ensina que a palavra “mistério” vem do latim mysterium; em grego mysterion, do verbo myo (fechar, ocultar). Daí que, no uso normal, significa algo escondido, difícil de entender.

         Mas, no uso religioso, esse termo é aplicado, sobretudo, nas religiões chamadas “mistéricas” – gregas e orientais ou egípcias -, à celebração cúltica de um acontecimento salvador divino, celebração pela qual os iniciados entram em comunhão com esses fatos passados, mais ou menos históricos ou míticos, mas que se crê que transmitem a salvação.

         Para São Paulo, o “mistério” é um conceito-chave para entender Cristo e a salvação que Ele nos comunicou. Mistério é o desígnio eterno de Deus pelo qual nos quer salvar e que se nos manifestou em plenitude em Cristo Jesus.  

         Mas o mistério não consiste tanto numa verdade oculta, nem muito menos num rito celebrativo, mas na atuação salvadora de Deus: mais ainda, o mistério é o próprio Cristo, em pessoa (Cl 1,27; 2,2; Ef 1, 4-9; 3, 4.9). “Mistério” refere-se à celebração cúltica – celebrar os mistérios -, mas, sobretudo, ao acontecimento salvífico por excelência, a morte e ressurreição de Cristo. Que se comunica, isso sim, visível  sacramentalmente no rito litúrgico cristão.

         Por isso, como participação nesse mistério central que é Cristo e a sua Páscoa, chama-se “mistério”, no uso da liturgia atual, a várias realidades: por exemplo, os “mistérios da vida de Cristo”, celebrados ao longo do ano litúrgico. Mas, sobretudo na linguagem dos Padres e dos textos litúrgicos, antigos e atuais, “mistério” é muitas vezes sinônimo de sacramento, e quer indicar que na nossa celebração litúrgica se torna presente o acontecimento salvador de Cristo, desde o seu Nascimento até a sua Páscoa e à sua Ascensão. Celebrar os santos mistérios é celebrar a liturgia, sobretudo por sua sacra mentalidade, pela qual entramos em comunhão privilegiada com o Mistério Pascal de Cristo. De modo particular, aplica-se à Eucaristia, os “Mistérios do Corpo e Sangue de Cristo”. Uma das aclamações que, no coração da Eucaristia, sublinha a sua centralidade é a do “Mistério da fé!” (Mysterium fidei), porque é a celebração que culmina e condensa a nossa salvação por Cristo e a sua comunicação a nós por parte do mesmo Senhor Jesus, agora Ressuscitado e realmente presente em toda a celebração.

         A “teologia dos mistérios” é a prospectiva do liturgista alemão beneditino O. Casel, que fez estudos profundos a partir dos cultos mistéricos pagãos, que ajudaram a Igreja, sobretudo a partir do Concílio, à compreensão da liturgia como atualização sacramental do mistério salvador de Cristo.

         Reunindo esses dados, nos colocamos a pergunta sobre o como integrá-los na liturgia e na pessoa orante? Do ponto de vista antropológico a liturgia precisa manifestar a sua própria dimensão lúdica, sensorial através de seus símbolos, da musica, da dança e dos gestos. Reencontrar-se com o conteúdo de sua espiritualidade somática – vive a fé com o corpo –  e deixar-se conduzir pela era do Espírito Santo.

 

 

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